letra
I
Universo em si mesmo
haja luz e haja som
pra que vocês parem de duvidar
dessa verdade tão elementar:
não tem como apartar
um só sol
dos inúmeros sóis
que se julgam sós.
No silêncio e no breu
não sou um místico
(pelo menos não com aquela insolência
que devia ter);
mas nem um cínico
pode dizer que as minhas rezas
não causam estrago nenhum.
o que me falta é só
parar de agir feito um mendigo
quando tento interceder por quem
não escuta nem metade do que eu digo.
seria ótimo
se eu conseguisse me dar esse ultimato
antes de morrer,
mas, não sei por quê,
é como se até hoje eu esperasse
pelo sacramento da confirmação.
meu desafio é —e sempre foi—
reafirmar pra mim mesmo
que tudo que pode ser meu
já está lá, no silêncio e no breu.
No espaço entre as palavras
¡ah! ¿quando eu vou contar uma história igual
àquela que desde a primeira vez
eu já sabia o final?
fico o mais quieto possível
enquanto tento descobrir
o melhor jeito de chegar
de Harã a Canaã.
¡ah! quando eu enfim me manifestar,
que não seja só pela satisfação
do tato ou do paladar.
e que eu fale numa língua
que qualquer criança entenda;
aí, sim, todos vão ver
que o verbo se encarnou.
Onde os pés deságuam
tinha que ser no mesmo mar
em que ele pisou
e tinha que ser
numa noite de vendaval.
alguns vão chamar isso de autossugestão,
outros de lei da atração;
por enquanto, eu me contento
em aproveitar o momento.
(vai saber de quantas outras mortes
eu ainda vou precisar
até que esse monte de água
vire o meu novo habitat.)
Só digo uma coisa
pode apostar o quanto for
que eles vêm pra Samaria também.
e é aí que mora o perigo
não só pra você mas inclusive
pra quem te evangelizou.
você vai ver milagres maiores até
do que esses que eu fiz.
e não é pecado querer fazer igual;
desde que fique claro desde já
que nenhum deles vai aceitar o seu jabá.
Ordens expressas
pode espernear, pode até me ofender se quiser;
não adianta, que eu não vou te mostrar
o que te espera bem aqui, do outro lado da fé.
(são ordens lá de cima, sabe como é.)
se você acha que eu estou sendo cruel
ou cauteloso demais,
¿por que não pede pra que os céus
te enviem um ou dois sinais?
talvez aí você descubra
do que um céu é capaz.
Se não fosse a sua vinda
se não fosse a sua vinda,
era capaz de eu cair
num sono que me deixaria
sem pai nem mãe.
e eu sequer ia ter
como chorar a minha orfandade,
porque nem o meu choro
seria de verdade.
¿em que momento eu passei a acreditar
que a noite era um acidente?
foi tão grande a minha decepção
que nem o óleo da extrema-unção
escapou de se misturar
com o sangue que eu coalhei.
O único milagre
só agora eu entendo a sua declaração
de que até Abraão se alegrou quando te viu chegar.
¿não foi ele o primeiro de nós a servir de porta-voz
dessa missa tão particular?
dizem que você saiu
do mesmo ventre que Simão,
Tiago, Judas e José.
mesmo que tenha sido assim,
o que importa é que no fim
você vai ser todo aquele que já é.
quero ver se na hora de beber vinho com fel
eu vou me manter fiel a essa revelação.
(¿o quanto eu vou conseguir me espelhar na pedra angular
que foi lançada em Sião?)
dizem que você saiu
do mesmo ventre que Simão,
Tiago, Judas e José.
mesmo que tenha sido assim,
o que importa é que no fim
você vai ser todo aquele que já é.
Do olhar
você está por dentro
do que foi acordado
no sonho que os nossos pais
tiveram por nós.
você viu o amanhã
que serviu de farol
pra todos que vieram depois.
você foi testemunha ocular
de até onde alguém é capaz de chegar
quando só leva na bolsa o essencial.
mas os seus olhos não me dão
nem a mais leve impressão
de déjà-vu ou déjà-rêvé:
o seu mundo sempre começa aqui.
Mardedunas
mais de uma pessoa
me disse que o deserto
me ajudaria a entender quem eu sou;
só não me disseram
qual seria o jeito certo
de se tornar um bom entendedor.
não tinha nem oásis nem caravançará
no mapa que me deram no Arabá.
(penso até que fizeram isso
só pra me assustar.)
ainda bem que eu nunca me esqueci
de que estava só de passagem
e não ia chegar a lugar nenhum.
(sem falar que eu já esperava
topar com muitas miragens
depois de algumas semanas de jejum.)
e, se eu morresse por lá mesmo, tanto melhor;
eu nunca quis desbancar Jó,
nem nunca quis provar nada
além do meu próprio suor.
quem me escuta há mais tempo vai me odiar
quando eu cair no gosto popular.
¿mas que culpa eu tenho
de o meu sertão agora estar
tão perto de virar mar?
II
Aposta cega
provavelmente ninguém vai ficar surpreso
se eu confessar que —não importa o que eu diga—
toda vez que chego numa terra nova
ainda sinto um frio na barriga.
é sempre um grande mistério
a forma com que vão me receber:
tem quem me atire pedras
e tem quem me atire um buquê.
(mas também tem quem só queira ver de perto
aquele nazareno tão esperto.)
por sorte, eu só penso nisso nas raras vezes
em que saio por aí à paisana.
porque pro que eu faço não existe feriado
—muito menos fim de semana—.
hoje, por exemplo, ¿quanta gente
não veio me pedir uma mercê?
aposto que nem Herodes
tem tanta demanda pra atender.
não me pergunte como eu dou conta do recado;
¡até anteontem eu nem era batizado!
pior ainda é tentar prever
quando isso tudo vai terminar.
me falam de um monte de profetas,
mas a maioria já se foi.
(e nenhum deles soube a hora certa
de cumprir o salmo 22.)
A gafanhoto dado não se olham as vísceras
¿por que não investir
naquilo em que eu sou bom
e que a Judeia toda reconhece
como sendo o meu maior dom?
quem não está na minha pele
acha que eu forço a garganta.
mas pregar não é difícil;
ficar calado é que cansa.
me disseram que eu só ia chegar
até os trinta e poucos, e olhe lá.
se for, isso é mais um motivo
pra escolher a dedo
quem eu vou batizar.
tem uns doidos que saem
lá dos cafundós de Efraim
só pra me ouvir dizer
que é melhor esperar
por quem vem depois de mim.
vivem pedindo a minha bênção;
mas se endireitar, isso ninguém quer.
¿não são esses os que Oseias
comparou com o fumo de uma chaminé?
agora, ¿alguém me explica o que aconteceu
pra eu atrair tantos fariseus?
eles, que sabem de tudo,
também deviam saber
o que eu penso das suas convenções.
sempre achei que fosse me tornar
um herege exemplar.
¿de que outro jeito eu ia ter
alguma relevância
num lugar com tantas leis?
De (muito) bom tamanho
deixa que digam que eu fiquei maluco
por querer entrar nessa guerra também.
logo vão ver que eu sou bem mais
que um mero pastorzinho de Belém.
esse incircunciso não é de nada.
¿eu com medo dele? ¡ah, faça-me o favor!
qualquer leão ou urso
é mil vezes mais ameaçador.
e, antes que você faça o maior escarcéu
só porque eu estou com a cabeça ao léu,
fique sabendo que fui ungido
pelo próprio Samuel.
não se deixe enganar por essa carinha de bebê.
se você soubesse o que eu já aprontei,
acho que ficaria
sete dias seguidos sem comer.
¿por que lutar tem que ser tão complicado?
uma funda, umas pedras, um alforje e um cajado
são tudo que eu preciso
pra mostrar quem manda aqui.
À deriva
não venho aqui bancar o maioral,
o bambambã ou coisa e tal;
mas acho que nem se eu visse
o mar se abrir a três côvados de mim
eu ia me espantar.
desde a décima praga
que eu não esquento mais
em saber quando vão
aparecer outros sinais.
viver já deveria ser
uma grande aventura
por si só.
ai de vocês que dizem que era melhor
ter ficado lá junto do faraó.
mesmo uma década de escravidão
é pouco pra que alguém
se esqueça do que não é.
e, mesmo que o meu fim
venha a ser mais cruel
que o de um bode
despachado pra Azazel,
nem por um segundo
eu vou me arrepender
da troca que eu fiz.
¿quer honra maior que morrer
tendo assumido os pecados
até de quem nem nasceu?
As três vigílias
todo mundo sabe
que eu não vim aqui
só pra beber e me divertir;
mas são muito poucos
os que estão a par
da minha condição.
e mesmo esses não entendem
onde eu pretendo chegar.
(tanto é que eles adorariam
que eu lançasse mão da espada
igualzinho a Barrabás.)
¡não vou fingir que está tudo bem!
pra variar, não dá pra contar com ninguém.
e eu nem sei mais por que estou rezando
(ou pra quem).
pra me fazer vigília
trouxe outros três,
mas vi que isso foi uma insensatez;
se eu não queria
que sentissem dó de mim,
era melhor ter vindo só.
porque deve estar na cara
o quanto eu estou apavorado.
(menos mal que a noite foi tão longa
que agora ninguém mais
se aguenta em pé.)
sim, eu sei que tem que ser assim,
e não me cabe dizer se isso é bom ou ruim.
só quis estar uma última vez nesse jardim
pra ter um mínimo de privacidade
antes do fim.
Glorificação
corajoso foi
aquele nosso irmão
que nem sequer tremeu
naquele coliseu
lotado de infiéis,
leões, e lobos cruéis.
A non domino
¿do que eu estou com medo?
¿já não está mais do que claro
o porquê de eu ter vindo pra Gerar?
¿não é muito cedo
pra eu concluir que se eu disser toda a verdade
vão querer me matar?
¿¡cadê a minha fé!? ¡¿onde é que já se viu
um homem mentir sobre o seu estado civil
só pra que outros deixem que ele coma e beba em paz?!
se a minha única ambição nessa vida
for morrer de morte morrida,
¿quantos versículos
vão ser escritos sobre mim?
talvez estejam certos
os que dizem que eu nunca vou passar
de um patriarca menor.
talvez os meus netos
morram sem saber quase nada
sobre vovô e vovó.
se for essa a vontade de quem me tirou do pó,
eu seria um idiota de marca maior
se lutasse pra me tornar um mártir ou um herói.
mas daí a dizer que eu deveria
esperar que uma teofania
me salve da cobiça alheia
é muita falta de semancol.
Quais não foram os motivos
eu sei que o povo está esperando
alguém assim que nem eu,
¿mas não dá pra esperar um pouco mais?
pelo menos até os meus filhos
aprenderem a se virar sem mim.
além do quê, a essa altura
pra muita gente eu não passo
de uma lembrança desagradável
(o bruto que não soube se conter).
¿quem ia me levar a sério
se eu dissesse que
você em pessoa me escolheu
pra botar por escrito
todas essas verdades
que não têm onde morar?
Curiosamente
coincidência ou não,
em todas as batalhas
em que eu me atirei
de corpo e alma
eu me saí muito melhor
do que naquelas
em que esperava contar
com a ajuda de Miguel.
Líquido e certo
você me deu
tempo de sobra
pra completar
todas as suas obras
e você me deu
um poder incomum
pra fazer ainda mais
do que foi feito em Cafarnaum.
me basta acreditar.
não penso que seja
arrogância nenhuma
dizer que o meu fardo
pesa menos que uma pluma
nem penso que eu esteja
sendo irreverente
por só aceitar ver
o que o meu coração sente.
me basta acreditar.
espero que um dia
alguém se importe
em compreender como
eu pude ser tão forte.
(não dá pra botar tudo
na conta da sorte.)
III
Para a felicidade geral da nação
¿quer saber por que eu não deixei
Abisai acabar com a raça de Simei?
se aquele doido morresse,
¿quem vocês iam tachar
de covarde, traidor,
puxa-saco ou raca?
Gestão de banca
pra ele eu dei cinco contos de réis
porque eu sabia que ele estava a fim
de especular pra chegar até dez.
quem dera todos fossem assim.
aí vem você e me diz que enterrou
o talento que eu te dei.
¿¡o que espera que eu faça, hein!?
¿¡que eu diga que está tudo bem!?
¡se eu te dei um talento foi pra você usar,
e não pra ficar o dia todo de papo pro ar!
¿¡qual é a sua, afinal!?
¿¡como é que você tem a cara de pau
de agir como quem não fez nada de mau
quando só me devolve o principal!?
ou você é muito pouco audaz
ou então é burro demais
pra enxergar as oportunidades
que a vida te traz.
pelo seu jeito de se portar
penso que você teria, quiçá,
um futuro até promissor
se resolvesse virar ator.
mas acho que você nunca vai saber
o quão grande poderia ser o seu cachê.
se não agir logo, não vão te querer
nem pra ser dublê
num desses filmes B
que às vezes passam na TV.
pronto, já dei o meu piti.
agora, dá o fora daqui
—e reza pra te darem
outra carapuça pra vestir—.
A oferta do hóspede
sinto um troço diferente
no coração e nos rins
só de pensar naquela gente
de Gibeá de Benjamim.
o sentimento que me invade
não é de mágoa ou desdém;
o que eu tenho é vontade
de estrangular alguém.
todos que viram o recado
que aquele levita escreveu
ficaram tão enojados
e indignados quanto eu.
se até ele pôde ser alvo
de tamanha sordidez,
¿quem aqui estaria a salvo
de ser a vítima da vez?
vocês não querem ser violentos
além da conta, eu sei;
¿mas por que acham que é o momento
de procurar um rei?
nenhum rei nunca fez nada
pra impedir uma mulher
de ser usada e descartada
como um objeto qualquer.
é por isso que eu digo
que cabe a cada um de nós
não esquecer que até um amigo
pode se tornar um algoz.
é hora do nosso povo
mostrar do que é capaz;
ninguém quer estar de novo
à mercê daqueles animais.
espero muito que encontrem
homens bons em Issacar.
porque essa guerra é pra ontem
(e ai de quem não se alistar).
espero muito que os guerreiros
que estejam vindo de Dã
voltem pra lá inteiros,
mas só depois de amanhã.
e que todo mundo siga
a liderança de Judá.
que deixem qualquer outra intriga
pra quando a guerra acabar.
há quem diga que ninguém devia
morrer de um jeito tão cruel;
mas é o sangue da apostasia
que faz correr o leite e o mel.
Até aos dentes
como eu fui inocente. . ..
acreditei piamente
que eles honrariam o acordo
que fizeram com a gente.
ontem, dois daqueles delinquentes
vieram sorrateiramente
e assassinaram todos os homens
que viram pela frente.
se eu não morrer também, oxalá
que eu encontre forças pra vingar
todo o sangue derramado em nome de Diná.
não tem nada mais assustador
que pegar numa arma pra se opor
a um povo que mata sem o menor pudor.
eles que pensem que eu não ligo
pro que aconteceu comigo
e com todas que perderam um pai,
um irmão ou um amigo.
eles que durmam sossegados
até que eu tenha terminado
de afiar a minha enxada,
a minha foice e o meu machado.
se eu não morrer também, oxalá
que eu encontre forças pra vingar
todo o sangue derramado em nome de Diná.
não tem nada mais assustador
que pegar numa arma pra se opor
a um povo que mata sem o menor pudor.
Quando as trevas trouxerem o caos e a desolação
veja o quão maravilhoso
é o espetáculo da criação.
todo fruto lhe é permitido,
exceto aquele —aquele não—.
prová-lo é ser deixado ao azar
da intempérie que se seguirá
quando as trevas trouxerem
o caos e a desolação.
quem me desobedecer
não será digno do meu perdão
(e os orgulhosos serão os primeiros
a sofrer na minha mão).
eu sou o olho que tudo vê;
não haverá onde se esconder
quando as trevas trouxerem
o caos e a desolação.
os rios serão cobertos de sangue,
a noite cairá num só instante,
e o assombro estampará as faces
do corajoso e do covarde.
não importa o quão justo
você se julgue perante mim
ou o quanto você anseie
por antecipar o próprio fim.
o seu destino eu já tracei,
e a minha palavra é a lei;
o que lhe resta é esperar
pelo dia da revelação.
mesmo os céus mais azuis
perderão toda a sua luz
quando as trevas trouxerem
o caos e a desolação.
A partilha dos despojos
essa é pra todos vocês
que se sentiram lesados
com a partilha dos despojos.
¿quem foi que determinou
o lado que ia vencer
essa batalha?
¿não estamos aqui falando
da mesma força que rege os dados?
¿alguém sabe o que ela quer,
ou o que ela entende
por certo e errado?
talvez nem tudo seja perfeito ainda,
mas vamos combinar que, a rigor,
nenhum de nós fez por merecer
sequer a travessia do Jordão.
Do pescoço pra baixo
com a mesma confiança
de quem acende uma menorá,
eu parto pra uma missão
que tem tudo pra me consagrar.
levo na coxa um punhal
pra um assassinato em primeiro grau
que vai fazer muita gente lembrar
de Eúde e Eglom.
que maravilha é saber
que, com pouquíssimo aparato militar,
mesmo um cara como eu
pode perfeitamente armar
um fuzuê comparável
a um incêndio em Taberá.
depois de Adonias vem Joabe,
e, se bobear,
vai acabar sobrando
até pra Abiatar.
não tem por que insistir
com um sacerdote de Eli
que eu nem sei como
já não morreu.
quem me conhece sabe
que eu não sou de dar pra trás
nem de fazer distinção
entre homens santos e generais.
meus holocaustos são sempre
os mais impessoais.
Em comum desacordo
já passou da hora de eu confessar
que tenho sido muito duro
com os nossos saduceus.
bem ou mal, eles ainda têm
a desculpa de não saber
por que o meu mestre morreu.
pra eles, qualquer um
que não esteja do lado
do Supremo Tribunal
é porque está
do lado errado
e ponto final.
mas eles vão mudar de opinião
quando as lágrimas de Raquel
chegarem em Ramá.
(¿quem nesse mundo seria capaz
de ouvir o choro de uma mãe
e não se sensibilizar?)
só não sei
se isso bastaria
pros outros talmidim.
dizem que a gente vive
em completa harmonia,
mas não é bem assim.
se até pra Anás
brigar é tão corriqueiro
quanto comer e cuspir,
¿o que esperar
de um bando de biscateiros
de Zebulom e Naftali?
Equidistância
às vezes eu me pergunto «¿o que é direito natural?».
¿e em que tipos de assuntos o povo pode se meter, afinal?
¿até que ponto é cabível dar a essas pessoas o poder
de decidir inclusive quem deve viver e quem deve morrer?
só quem sabe o quanto Marte gosta de andar com Plutão
sabe dar valor à arte de reconhecer a voz da razão.
queria tanto que Apolo aparecesse por aqui também. . ..
¿e o que Minerva diria se pudesse ver o que os meus olhos veem?
só não falei de Vênus
porque ela é muito caprichosa
(e o seu mundinho cor-de-rosa
nunca me convenceu).
se eu fosse um Augusto, teria feito até um dossiê
sobre aquele homem justo que eu fui incapaz de defender.
eu fiquei tão preocupado em não incitar mais um motim
que mal deu tempo de escrever o nome dele em hebraico, grego e latim.
A letra da lei
sei que é estranho ficar jejuando
pra salvar a vida de um bebê
que não devia nem ter nascido,
¿mas o que mais eu ia fazer?
eu precisava tentar
expurgar todo o mal
que eu tinha causado
com a minha conduta imoral.
era evidente que em algum momento
eu ia ter que me alimentar;
mas não enquanto aquele bebê
pudesse sofrer no meu lugar.
não foi bonito o que eu fiz,
mas pelo menos agora eu sei
que sempre vou ter um juiz
pra me lembrar da letra da lei.
IV
Prece estoica
que eu saiba exatamente o porquê
de todos os meus sacrifícios;
que nem tudo que eu escolha fazer
tenha que ser o mais difícil;
que eu não use o choro da Pietà
pra justificar qualquer desgraça;
e que a tristeza não deixe de me afetar
(por mais que eu saiba que tudo passa
e vira pó).
se é sempre tempo de lutar
pra ver as coisas como são,
¿o que me impede de um dia chegar
a uma grande conclusão?
fui como um rio afastado do mar
sonhando em ir da água pro vinho.
foi só no instante em que comecei a andar
que ficou claro que andar sozinho
é uma ilusão.
sabedoria não é dizer amém
pros mesmos pecados de sempre.
só vou ser livre quando aprender também
a me reconhecer no que sentem
os meus irmãos.
O que só você vê
¿que loucura foi essa que eu fiz
de tentar te impedir de ser infeliz?
¿quem sou eu pra chegar e te dizer
o que devia ser de você?
só você sabe por que te convém sofrer
mais que um camelo quando passa
por uma agulha de crochê.
bem que eu gostaria de te amar
de uma maneira um pouco menos vulgar
e ser tão discreto quanto o ar
que você odeia me ver desperdiçar.
mas, sinceramente, nem ligo mais
de estar bancando de novo o Satanás.
¿e daí se eu falo demais?
¿não é você que sempre diz
que ninguém sabe o que faz?
O último dos cireneus
faz um tempo que eu estou
procurando o que te prometer.
chego às vezes a pensar
que já dei tudo de mim;
mas não tenho nem noção
de como deve ser pesada
a cruz que vou carregar.
foi por isso que cheguei
ao ponto de me ajoelhar;
foi assim que aprendi
a conversar com você.
e o fato é que nada mudou
desde aquele dia
em que comecei a te acompanhar.
sigo sendo
o último dos cireneus.
não posso descansar
enquanto não fizer
do seu calvário o meu.
esse é o monte
que me falta ascender.
não é só a minha sina:
é o meu dever.
Que um refúgio só me baste
até que não foram ruins
esses seis anos em Siquém;
todo mundo lá me tinha
como uma pessoa de bem.
¿mas quantos outros abibes
eu vou ter que esperar
até conseguir me perdoar
pelo que aconteceu
naquele dia que era
pra ter sido de jubileu?
¿entende por que hoje
eu ando tão mais devagar,
não falo quase nada
e não baixo a guarda
nem pra almoçar?
por sinal, acho que já falei
o suficiente sobre mim.
como você deve imaginar,
não foi pra isso que eu vim.
tudo que eu mais quero
nesse momento é saber
se ainda tenho
um espaço no seu coração.
se não, toda essa lenga-lenga
vai ter sido em vão.
talvez fosse melhor
se eu voltasse em sivã,
que aí eu te traria
até uma fatia
de torta de romã.
mas hoje é só
um refúgio, nada mais.
Antidescendência
ainda estou tentando entender
o que aconteceu com você
desde que te deram em Mispá
um país inteiro pra governar.
nunca vi uma pessoa
mudar tão repentinamente assim.
é quase como se tivessem
colocado um sósia no seu lugar.
¿pra que tanto rancor?
o que passou passou.
¿quem liga se você não abateu
dezenas de milhares de filisteus?
¿e por que você me olha torto?
não fui eu que traí
a confiança daquele
que faz até o chão tremer.
¿eu lá tenho culpa
de você não estar à altura
da missão que recebeu?
Às claras
pensa em Ainoã, em Abigail
e nos filhos que vocês vão ter.
quem sabe assim você esquece
esse tal de Jônatas.
tudo indica que ele foi
um cara excepcional.
isso eu nem vou discutir.
¿mas quantas das flechas
que ele atirou
tinham assumidamente
a intenção de te defender?
Em compasso de espera
¿no que você pensou
quando eu fiquei
quase seis semanas
afastado da civilização?
¿já reparou no quanto
as suas reações
tendem a ecoar
o mundo que te cerca?
você já devia
ter se acostumado
com a minha aparente
indiferença ao seu sofrimento.
¿por que você ainda
me cobra tanto?
nem se eu quisesse eu poderia
queimar qualquer etapa.
quando a minha hora chegar,
pode ficar tranquila
que não vai ter como não saber.
até lá, eu vou continuar
te perguntando
«¿o que tenho eu contigo?».
não vale a pena
entrar nos pormenores
de cada decisão que eu tomo
sem o seu consentimento.
se você confiasse
nesse que te fala,
tudo se resumiria a não mais
que dois mandamentos.
À esquerda do messias
se já é tarde,
só posso ser quem eu sempre fui.
não vou renegar a vida que eu levei.
não se culpe;
você fez o que dava pra fazer.
eu é que nunca dei ouvidos
a qualquer tipo de sermão.
ser forte era tudo o que eu queria ser.
¿quem estava lá quando eu mais precisei?
compaixão, caridade. . ., tudo isso é uma miragem.
nunca me importei de aprender a rezar,
e não vai ser agora que eu vou começar.
¿por que não guarda as suas preces
pra quem de fato te merece?
Pra ser refeito
não faço a mínima questão
de voltar a ser um filho seu.
por mim, eu comeria até
do pasto que os bois
fizessem sobejar.
você sabe o quanto eu quis
ser o dono do meu próprio nariz
e você sabe também
que eu não fui mais que um refém
dos prazeres que o mundo tem pra dar.
¿que moral eu tenho pra te chamar de pai?
O ponto de interseção
foi sem nenhuma garantia
de que você me entenderia
que eu decidi vir de tão longe.
mas eu teria vindo de qualquer jeito:
estando ou não entre os seus eleitos,
tendo ou não feito por onde.
só o que importava era te falar
daquele dicionário tão peculiar
que sequer mencionava a palavra azar.
não que eu soubesse com precisão
o que eu mesmo faria a partir de então.
tudo que eu tinha era a minha imaginação.
não foi um plano dos mais brilhantes
mas, comparado com os que eu tive antes,
me pareceu bom o bastante.
eu podia ter feito menos alarde;
podia até ter chegado menos tarde.
eu só não podia ser covarde.
não vou me desculpar por te querer bem
nem por querer que você me queira também
—até porque eu nem sei mais dizer quem é quem—.
V
Avis rara
é compreensível que o meu legado
tenha sido tão mal preservado.
ninguém sabe quem foram os meus pais,
nem se eu morri de causas naturais
ou se eu me enforquei.
o pouco que sabem ao meu respeito
vem do que eu teria dito e feito
depois que derrotaram Quedorlaomer
e seus aliados.
mas isso faz tanto tempo. . ..
se a minha memória não me trai,
foi numa época em que Sara
ainda se chamava Sarai.
desde então, dá pra dizer que eu tenho sido
praticamente um foragido.
com uma diferença fundamental:
não sou eu que estou fugindo.
eu continuo disposto a abençoar
mesmo quem nem souber
onde fica a minha querida
baixada de Savé.
infelizmente, só quem me procura
é quem já passou pela noite escura
que vem antes da queda de Babel.
e que ninguém se engane:
essa noite é longa pra dedéu.
Exegéticos
lá onde antes era Jebus
foi que alguns
leram os versos que eu compus
como se fossem de um targum
aparentemente escrito
pra renovar os nossos ritos
de transfiguração.
se eles soubessem no que
eu tive que me tornar
pra finalmente conceber
essa minha mishná,
eu ficaria muito surpreso
se eles suportassem o peso
dessa revelação.
Pressuposto #1
quer você seja um ateu
ou um gentio que se arrependeu,
presta atenção na mitzvá
que eu acabo de decretar:
«ninguém pode fermentar
um vinho branco ou grená
igual ao de Caná
se não tiver
ofendido tanta gente
quanto Paulo e Barnabé».
você tem que ser turrão
a ponto daqueles sete irmãos
de um dos livros dos macabeus
te confundirem com um dos seus.
você tem que se expor
ao frio, ao calor
e ao descaso enlouquecedor
de Belsazar
(pra quem a vida é só uma festa
sem hora pra acabar).
Descortinado
depois de não sei quantas vidas
tomando o santo nome em vão
e jogando conversa fora,
foi meio que do nada que eu me achei
num ponto além de qualquer discussão.
só aí já deve dar
pra ter um gostinho de como é
esse meu novo statu quo.
o resto, meu irmão, é com você.
se ainda quer ser uma pessoa
tão descortinada assim,
é bom saber que vão te medir
com outro prumo e outro cordel.
Horizonte e vértice
com esse meu pedigree é difícil até fingir
que eu sou alguém que se realizou
(principalmente quando lembro
de Jim Caviezel ou Willem Dafoe).
se já foi duro conquistar a cidadela de Rabá,
imagina então quando eu for pra Ascalom
pra arrancar as últimas escamas
do tronco de Dagom.
queria ser como um sabiá,
um bulbul ou um grou
que nunca enjoa de voar
pra onde já voou.
¿mas pra que tirar um brevê se não for também pra ver
lugares com que eu nem ousava sonhar
nos tempos em que eu só ficava alto
numa mesa de bar?
nenhum dos nossos litorais
é mais intimidador
que as paisagens abissais
do meu interior.
No grande esquema das coisas
¿pra que falar em anil,
violeta, ardósia e bordô
se nem Picasso descobriu
o que fazer com tanta cor?
¿qual a necessidade
de saber o ponto exato
em que cada uma deve ficar?
isso é pura falta de fé.
(e sem fé não dá nem pra começar.)
não sei se você percebeu,
mas os pincéis que você tem
são iguaizinhos aos meus.
é a mesma marca, meu bem.
¿qual a sua desculpa
pra não ver o que eu vejo?
olha só pra esse céu ao seu redor.
o traçado é o mesmo
pra todo e qualquer desejo,
desde o menor até o maior.
com certeza você já duvidou
dessa tal de realidade.
então, me diz,
¿quem você pensa que eu sou:
um homem ou um avatar?
você já tem ao seu dispor
tudo que alguém pode querer
pra ser um ótimo pintor:
conhecimento, poder
e amor.
Pra quando eu for o mesmo
foi muito bom beber daquele chá
que só você sabia como preparar.
porque agora eu vejo com nitidez
que tanto faz quanto fez
se existia ou não um complô
pra que eu me sentisse inferior
por nem querer saber de um elixir
que eu tinha medo de que pudesse
inclusive me abduzir.
hoje eu sou o que eu sempre fui:
um homem comum, que dorme, acorda
e solta pum.
pode até parecer que eu estou só
esperando pela vinda de Siló
pra me permitir sentir
alguma espécie de frenesi.
mas acredite se puder:
eu já estive em Genesaré.
eu sei exatamente o que é tocar
com os meus próprios dedos
na borda do abadá
daquele que sempre vai ser
a estrela da manhã
pra mim, pra Blake
e pra San Juan.
Os dias que já vieram
me vejo em esculturas, livros e telas;
não tinha como não me ver também em vitrais.
me vejo tanto em quem diz que a vida é bela
quanto em quem diz que não aguenta mais.
o meu futuro só parece distante
pros que não aceitam que ele já chegou
e que eu vi, ouvi e senti tudo isso antes.
conheço cada cheiro, cada sabor.
qualquer um teria se antecipado aos fatos
se tivesse me procurado como eu.
fui, ao mesmo tempo, apaixonado e indiferente.
escolhi sabendo que não tinha opção:
o único jeito de me fazer frente
seria vivendo em completa negação.
Neustã
faz anos que eu não sei
o que é me amuletar
pra pedir um favor.
tudo que aprendi
em termos de oração
veio de afirmar «eu sou».
talvez isso soe como um clichê,
mas acho que ajuda
a entender por que
eu me sinto tão bem.
me orgulho de dizer
que não dependo mais
de nenhum talismã
pra me sentir capaz
de puxar pelo anzol
qualquer leviatã.
se às vezes eu me entristeço também
é só porque acho
que quase ninguém mais tem
essa minha paz.
por favor, não me leve a mal,
mas não tem nada menos natural
que fitar uma serpente de metal
pra, quando muito, adiar um final
do qual só vai escapar
quem se agarrar no próprio calcanhar.
Emocionalmente
emocionalmente, faz pouca diferença
que você diga tudo que pensa
se não tiver uma fé imensa
no caminho que escolheu pra si.
¿quanta gente atravessa essa fronteira,
ainda mais de primeira?
sei de quem leva uma vida inteira
pra aprender a adestrar a imaginação
a dar por certo o que é só especulação.
eu mesmo já me dispersei tantas vezes. . ..
é até constrangedor confessar.
não é à toa que tem quem ache
que eu sofro de TDAH.
o que eu nunca ignoro é um cisne negro.
se pra você eu estou falando grego,
estende a mão, pega aquele trevo
e me diz quantas folhas você vê.
não tenho a pretensão de me tornar
um santo ou algo assim,
nem estou nadando contra a corrente.
o que eu quero é pura e simplesmente
sentir.
VI
Reencantamento
toda noite eu me dou de presente
uma vida um pouco diferente,
releio o meu ensaio de aniquilação
e levo as mãos até o peito
certo de que tive um dia perfeito.
¿o que é a perfeição
senão o reconhecimento
de que o coração
está o tempo todo atento
ao cumprimento da lei
que prescreveu?
não me envergonho de ter me submetido
à tirania dos meus cinco sentidos.
mais que importante, isso foi fundamental
pra que eu me sentisse no direito
de nunca me dar por satisfeito.
e agora, que eu estou
atendendo ao chamado
pro qual eu sempre soube
que estava destinado,
percebo como é bom
tomar parte na criação.
sou capaz de passar
horas e horas à toa,
imerso num momento
tão sutil quanto uma garoa
que eu não sei nem quando vem
nem quando vai.
tudo em nome do filho
e do pai.
O segundo filho
tanto faz quem eu sou,
de onde vim ou pra onde vou;
qualquer homem ou mulher
pode dar o testemunho que quiser.
a começar pelo fim
da história de Abel e Caim.
afinal, os dois são
muito mais que irmãos.
e eu sei que um só fez
o que o outro pediu
(mesmo sem perceber).
o segundo filho sempre é
aquele bom pastor
que dá a vida pra redimir
todas as suas ovelhas
pra que ele próprio aprenda
a cair em si.
A gosto do freguês
te digo com todas as letras
que eu fui um daqueles cinco mil
que viram com os próprios olhos
o que nenhum escriba viu.
também estive entre os setenta
que de dois em dois
foram enviados pras cidades
que ele visitaria depois.
no momento sou um dos doze
que ele mesmo escolheu
pra ressuscitar os mortos
de quem quer que se diga judeu.
foi pra me tornar todos esses
que eu escolhi ser uma eterna criancinha:
faça chuva ou faça sol,
tudo que acontece é culpa minha.
Figurado
quem chamou a casa de Onri de Oolá
não quis nem te confundir
nem te desnortear.
Ezequiel nem mesmo
foi o primeiro a fazer
esse tipo de comparação.
falar da perversão de uma mulher
é a maneira mais eficaz
de levar alguém a se sentir
na pele de todos os reis
que andaram no caminho
de Jeroboão.
A fraude perdoada
não tenho como provar por a mais b
que tudo que aconteceu teve um porquê
(e eu duvido muito que você pararia de reclamar
mesmo se pudesse ver o meu alvará).
também não foi pra me justificar
que eu pedi pra falar contigo em particular.
meus métodos podem não ter sido os mais convencionais,
mas, no fim das contas, ¿que diferença isso faz?
vamos aproveitar esse momento a sós
pra fazer as pazes de uma vez, ¿que tal?
por mais que a gente brigue, a distância entre nós
vai ser sempre de menos de um cordão umbilical.
não estou dizendo que eu sou nenhum santo, ¿viu?
só não quero que o clima fique ainda mais hostil.
quando penso em você, é quase impossível não cravar
o indicador na raiz do polegar.
vamos aproveitar esse momento a sós
pra fazer as pazes de uma vez, ¿que tal?
por mais que a gente brigue, a distância entre nós
vai ser sempre de menos de um cordão umbilical.
Via de regra
a euforia que eu senti me sugere
que parte da razão de você ter aparecido
foi que eu estava desesperado
pra encontrar alguém com quem me engalfinhar.
você foi só um aperitivo pro que vai acontecer
se eu não for mais escrupuloso com esses pensamentos
que, via de regra, eu tento fingir que não são meus.
desde cedo eu me especializei
no ofício de enterrar
qualquer terafim
que possa me incriminar.
¿como é possível que mesmo assim
sempre descubram quem se esconde
por detrás dessa minha fachada
de paz e amor?
O último terço
desde que eu era um guri
que eu tenho facilidade pra dormir.
mas sonhar é uma arte milenar
que eu estou muito longe de dominar.
¡os meus sonhos são tão triviais!
ou são coisas que saíram nos jornais
ou é alguma fofoca que eu ouvi
da boca de Mara —digo, Noemi—.
¿onde vão parar todas essas horas
que eu passo lendo e discutindo Ageu?
quando caio no sono,
não me lembro de nada
do que ele escreveu.
não é possível
que eu ainda pense
que carne e sangue
têm alguma chance
de me redimir.
suponho que a culpa seja toda
desse meu cabelo acaju,
que faz com que os anjos
que guardam o Éden
pensem que eu sou
só mais um sósia de Esaú.
Conspiratório
por um segundo eu pensei ter ouvido
algo como um mugido,
o que logo me fez suspeitar
que tinha alguém lá fora profanando o Shabat.
pouco depois ouvi um estrondo,
e pensei num crime tão hediondo
que talvez fosse capaz de redimir
até aquele cometido por Simeão e Levi.
¿o que eu posso fazer,
se tudo é motivo pra devanear?
nem quero imaginar o que teria acontecido
se me tivessem chamado pra lutar no Megido.
se bem que eu adoraria
ter ido pra guerra com Josias.
e me parece razoável supor
que eu teria sido um ótimo perdedor
(¿o que é uma derrota a mais
pra quem já passou
por tantos juízos finais?)
levando tudo isso em conta,
não devia causar espanto
o fato de eu não me esforçar muito
pra provar as coisas que falo e canto.
estou sempre no limiar entre morrer e matar.
A ética do intangível
isso, que você insiste em chamar
de excesso de abstração,
é o que me salva de reduzir a vida
a uma série de imperativos naturais.
não tem quem me convença que eu não nasci
pra ser o ator principal de um drama em quatro atos,
sendo que o segundo deles terminou com a admissão
da tragédia que me tocava anunciar.
e no último ato eu vou estar
fora dos limites de qualquer jurisdição.
Cá estamos
o que você ouviu foi mais ou menos
metade do que eu tinha pra dizer.
mas calma, que ainda tem
muita água pra rolar
daqui até adar.
às vezes eu me sinto como se fosse
um filho bastardo de Num;
já despejei uma pá de cananeus
mas quando vou ver sempre falta. . ..
o meu medo é não ser lúcido o bastante
pra me manter desacordado até o fim
(porque a quantidade de café
que eu já consumi
não está no gibi).
às vezes eu me sinto como se fosse
um filho bastardo de Num;
já despejei uma pá de cananeus,
mas quando vou ver, sempre falta um.
VII
Se não for, fica sendo
não é de hoje que eu tenho a impressão
de que quando a sorte vier ela vai vir de supetão.
e isso independentemente do que eu fizer
antes de cair no piscinão de Siloé.
mas não tenho nenhuma intenção de parar
de ler e beijar a minha mezuzá.
(toda ajuda é mais que bem-vinda pra quem
não deu a sorte de ter descendido de Sem.)
não desprezo nada que tenha o potencial
de tornar a minha vida mais surreal.
pena que nenhum professor conseguiu
me ensinar a escrever o jota e o til.
foi só o que faltou pra eu completar o ABC
que eles mesmos se recusavam a ver pra crer.
a matéria em que eles são PhD
é justamente aquela que eu mais quero desaprender.
se eu já não estivesse entre Sene e Bosês,
talvez tivesse tempo pra tanta lucidez.
mas convenhamos que pegaria até mal
se eu ainda desse alguma moral
pra quem fala que eu me comporto igual
a um viúvo que dorme em cama de casal.
Exercício de fé
imagino que você ainda não entenda
como eu não cheguei aqui
todo coberto de cinzas.
nem parece que o meu gado
me abandonou de repente.
eu estou tão contente, tão sossegado.
¿e o que dizer de tudo mais que eu tinha:
o meu ouro, a minha prata,
os meus olivais e as minhas vinhas?
¿com quem foi que eu aprendi
a disfarçar a minha dor?
¿e de onde eu tirei
que eu só preciso
de um dia ou três
pra me recompor?
De ontem e sempre
¿existe limite pra desfaçatez
dos que querem estar no meu lugar?
agora inventaram até uma lei
pra que os leões tenham o que jantar.
¿será que essa gente tão cheia de si
não sabe que quem me ungiu
nunca, jamais, vai admitir
que eu morra num covil?
lamento se estou ofendendo alguém
com esse meu jeito um tanto blasé,
mas não reconheço outra Jerusalém
além da que me viu nascer.
nenhum decreto me faria
deixar de ser quem eu sou.
¿eu já não vivia assim
nos dias de Nabucodonosor?
A pergunta inevitável
¿vamos dar um rolê? não parece que vai chover.
mas, mesmo que neve, prometo que vou ser muito breve.
na verdade, só quero te fazer uma pergunta
que talvez me ajude a te conhecer melhor.
diz aí: ¿como você fica tão zen
quando é caluniado justo por quem
mais devia estar do seu lado?
¿isso é de se esperar?
Elegibilidade
ainda que alguém
herde o manto de Eliseu,
esse alguém nunca poderia ser
nem você nem eu.
e isso não tem nada a ver
com a região em que a gente nasceu.
de fato, é até provável
que o próximo filho do homem
também seja galileu.
o lance é que ele (ou ela)
não vai poder titubear
nem se a rainha de Sabá
vier pra lhe testar.
nem vou falar da raiva
que Caifás não vai sentir
quando souber que os publicanos
escolheram outra pessoa
pra ser o seu rabi.
mas o que é mais angustiante,
embaraçoso e desanimador
é constatar que um profeta
só é bem-vindo numa festa
quando se oferece pra repor
todo o estoque de licor.
Do ponto em que fui visto
vou começar do começo, ¿ok?
assim fica mais fácil de explicar
por que foi que eu concordei
em engravidar a pobre da Agar.
depois de mais de meio século de vida secular,
eu não tinha muito que comemorar.
mesmo com a bênção do rei de Salém,
parecia que eu nunca seria nada além
de um bom libertador de pessoas e bens
que pertenciam a sabe-se lá quem.
foi por essa época que eu cheguei
a sacrificar alguns animais.
e um deles era da minha própria grei. . ..
até hoje não sei como eu fui capaz.
mas uma cobra eu não mataria nem a pau.
esse seria um erro fatal,
e um crime ainda pior
que o dos antigos vizinhos de Ló
(porque equivaleria a dar o braço a torcer
a todos os que queriam me ver cair na real).
enfim, desculpa se eu me extraviei.
na próxima eu falo de Ismael.
De pouca monta
¿que serpente te mordeu?
você anda tão deprê.
¿teve algum filho seu
que eu me esqueci de benzer?
devem ter falado muito de mim
desde que eu parti de Suném,
mas você não precisa acreditar em ninguém
se não quiser.
¿pra que tanto bafafá
se o que eles querem é brigar
pra ver quem chega primeiro no Sheol?
podem falar o que for;
meu sacerdócio é superior
ao de qualquer um desses supostos
descendentes de Arão
que nem dos seus cupins
conseguem se livrar.
De longa data
esse é o momento ideal pra jogar a pá de cal
nessa série de boatos que você ouviu
de que eu estaria ficando senil.
se eu fosse um velho gagá,
eu nem ia mais lembrar
do acordo que eu fiz com Abimeleque
num tempo em que eu já era
o pai de uma fera
tão perigosa quanto um javali.
e você também há de convir
que dificilmente eu lembraria
do exato dia em que eu me circuncidei.
lembro até de quando
fui embora de Ur
sem saber direito
pra onde estava indo.
mas é melhor eu ir parando por aqui,
antes que você me peça pra explicar
o que eu tinha na cabeça
quando fui pra Moriá.
Mais que justificado
você está detestando
essa minha passagem por Edom, ¿não é?
pelo visto, você continua
me levando a sério demais. . ..
eu nunca disse que pretendia
ficar quarenta anos aqui;
só acho mais rápido subir
que contornar as montanhas de Seir.
¿ou você já se esqueceu
que agora eu sou um cabra marcado pra morrer?
ossos do ofício, ¿fazer o quê?
choramingar é que eu não vou.
Excesso
perder a razão
é um daqueles presentes
que ninguém pode te dar,
e é impossível fazer jus
ao que você sente
quando enfim chega lá.
com todos os meus defeitos,
não fui páreo pra revelação
de que eram meus por direito
uma alma e um corpo sãos.
não dá pra voltar
pra aquela vida tão mesquinha
que um dia eu me impus.
¿faz sentido entoar
as mesmas ladainhas
de antes do ascenso da cruz?
se os meus menores erros
são os que eu mais confesso,
que de hoje em diante
eu só peque pelo excesso.
VIII
Contando as voltas
são várias as cidades
que eu quero conquistar,
mas nem todas elas têm que ser pra já.
o momento ainda é
de aprender o bê-á-bá
de invadir, pilhar e devastar.
faz dias que eu venho
preparando o gogó
pra fazer minha grande entrada em Jericó.
aí sim é que vai ser
uma desgraceira só
(tipo Sodoma, ou até pior).
é óbvio que ninguém
precisa acreditar em mim
(não sou exatamente um nefilim),
mas aquele muro deles
é uma coisa tão chinfrim
que é difícil imaginar outro fim.
e olha que eu nem estive lá,
mas quem já foi me diz
que é um lugar de pessoas bem hostis.
só pretendo poupar mesmo
aquela meretriz
que me garantiu um final feliz.
O mais tardar
só quem já trapaceou no uni-duni-tê
está habilitado a entender
por que eu não perco mais um minuto sequer
brincando de malmequer.
talvez eu esteja ficando louco,
mas sinto que daqui a pouco
o meu resgate vai chegar.
nada é questão de sorte ou de azar.
quem pede recebe, e o que eu peço
nem é tão complicado assim
pra quem ressuscitou até
o filho de uma viúva em Naim.
se eu não passo de um imbecil,
aí já são outros dois mil.
eu devia era me vestir com a pele de um delfim
ou com um manto carmesim.
assim me teriam como um animal
um tantinho mais racional.
o problema é que eu sou um gato pardo
com a pressa de um guepardo
e uma sede que nem um jaguar
conseguiria acompanhar.
quem pede recebe, e o que eu peço
nem é tão complicado assim
pra quem ressuscitou até
o filho de uma viúva em Naim.
se eu não passo de um imbecil,
aí já são outros dois mil.
Pra além da distância
volta e meia acontece de alguém
ouvir as minhas orações
enquanto dá de comer
a Marduque ou a Nabu.
é que eu penso tão alto
que mesmo entre os caldeus
a minha voz soa tão familiar
quanto a de Beltessazar.
sorte deles que eu não falo aramaico.
porque eu prefiro viver num estado laico
a ter que sujeitar cada capricho meu
à boa vontade de um imortal qualquer.
Fruição
¿quem te vendeu essa de que eu fiz o que fiz
só pelo prazer de exibir a cicatriz
que ganhei na passagem da inocência pra razão?
você pode até não acreditar,
mas por trás de toda essa chutzpah
existe uma enorme consciência do quão pouco eu sei.
do que eu não tenho dúvida nenhuma é que eu sou
movido muito menos a vaidade do que a amor.
e esse sentimento, além de lindo, é libertador.
você não imagina o tempo que perdeu
tentando fazer com que eu virasse um nazireu.
a sua sobriedade nunca poderia ser um problema meu.
¿te parece uma atitude cristã
passar dias e noites com medo de que Cã
volte pra nos descobrir?
eu seria um homem pra lá de infeliz
se vivesse em função de arrancar pela raiz
inclusive males que mal posso conceber.
faço o que faço, em parte, pra te convencer
de que não é o que eu faço ou o que eu deixo de fazer
que faz de mim alguém mais ou menos digno do reino do amanhã.
¿de que adianta carregar essa cruz
se você não aguenta ver nem o seu próprio pus?
você se faz de santa, mas é só a pose do mártir que te seduz.
¿quando é que você vai se dar o privilégio de me ver a olhos nus?
Tácito
você mexeu as cadeiras
igual à Salomé,
e eu já perdi a cabeça.
¿o que mais você quer?
você teve a noite toda
pra tentar adivinhar
o que leva um homem
a preferir ir dormir no sofá.
tenho até medo de descobrir como você faz
pra saciar um apetite tão voraz.
(se bem que só de te olhar dá pra ver
qual não deve ser o seu métier.)
espero que esse incidente
fique só entre nós dois.
nem sonhe em sair por aí
dando nome aos bois.
de resto, sinta-se livre pra recorrer
a um carpinteiro (ou, quiçá, um luthier)
que tenha muita lenha pra queimar
e que não te negue fogo na hora H.
Como um homem só
tenho por Judite uma devoção
maior do que por Jefté,
Jair ou Tolá.
graças ao exemplo que ela me deu,
hoje eu já consigo jejuar
sem chamar muito a atenção.
consigo até usar
cilício em volta dos quadris
sem que quase ninguém
perceba o desconforto
que isso me traz.
e, se eu me vir
tendo que disfarçar
inclusive a frustração
que eu sinto por não conseguir
esquecer tudo que
não vivi nem vou viver,
que assim seja então.
De prontidão
é tão grande a vontade que você tem
de servir de exemplo pra alguém;
mas é tão curto o tempo que te dão
pros seus votos de consagração.
o seu discurso até que condiz
com o de uma pessoa feliz;
pena que ele também te custou
tantas e tantas noites de louvor.
¿o quanto mais você vai suportar
esse desconforto, esse mal-estar?
¿e até quando vai justificar
a sua falta de fé
atrás de um ismo qualquer
que te faz ficar de prontidão
pra desmentir tudo que vem
do seu coração?
¿como você sabe o que te satisfaz
se nunca nem chegou a correr atrás
do que te daria mais prazer
só pra não ter a quem ofender?
eu sei os mandamentos todos de cor,
mas, pelas barbas de Isaque e de Jacó,
¿nunca te deu vontade
de se aventurar pra além do umbral
que separa o bom do mau?
pra curiosidade tem perdão;
pra covardia é que não.
¿você precisa tanto assim
guardar o seu pomar?
¿qual foi a última vez
que tentaram te tentar?
Páginas ímpares
¿quantos dos ascetas que eu conheci
não teriam feito o mesmo que Geazi,
que, quando achou que estava fora do radar
da pessoa que ele mais fingia admirar,
foi atrás de ninguém menos que Naamã
decidido a transformar
a sua maloca em Ofel
num templo de Rimom?
e ainda insistem em ficar
jogando enxofre em Zeboim e Admá. . ..
daqui a alguns anos, quando eu estiver
lendo e escrevendo apenas em coiné,
os vilões das minhas histórias vão ser
esses mesmos «homens bons»
que esticam os seus tefilin
até não poder mais.
Desregrado
nada do que eu cantei
foi com a intenção de te desregrar.
de Nicolau já basta um.
¿mas como eu ia ignorar
o simples fato de que foi
por não ter botado fé em Gabriel
que já faz oito meses que você
não discute com ninguém?
Relato de um expatriado
é claro que Manassés é a minha tribo,
mas isso não significa muita coisa.
se você quer tanto me incluir em algum grupo,
que seja o dos que escolheram morar do outro lado do rio.
foi justamente pra que não se enervassem
com essa minha mudança de planos
que eu prometi não só que continuaria lutando
mas que estaria, com Rúben e Gade, na linha de frente.
e não pense você que eu não soubesse
que as minhas chances de sobreviver
eram de uma em um milhão.
acontece que eu também esperava
provar de uma vez por todas
que conquistar Gileade não foi só um ato de rebeldia
de um filho inconformado com a bênção que recebeu.
IX
A título de informação
admito que fui pego de surpresa
quando soube que o rei mandou me chamar;
mas logo entendi que, com certeza,
isso foi ideia de Josafá.
meu rei ainda hoje se sente mal
pela morte dos profetas de Baal
e dá ouvidos a qualquer zé-mané
que lhe diga que tudo vai dar pé.
é por essas e outras que estou aqui,
falando o que ninguém quer ouvir.
posso até ir parar no xilindró,
mas a verdade vai continuar sendo uma só.
tão perigoso quanto se enfezar comigo
é entrar na onda de Jezabel.
não sou nem seu amigo nem seu inimigo;
estou simplesmente cumprindo o meu papel.
¿quem precisa de urim e tumim
pra saber qual vai ser o seu fim?
o fim não está nem próximo, meu senhor:
pro seu governo, o fim já chegou.
é por essas e outras que estou aqui,
falando o que ninguém quer ouvir.
posso até ir parar no xilindró,
mas a verdade vai continuar sendo uma só.
Estudo de caso
viver nesse palácio
não parece ser tão agradável
quanto alguns dizem que é.
é só dar uma olhada no harém:
tem concubina lá que não se mexe nem
pra tirar o pó do rodapé.
que Vossa Majestade me perdoe a indiscrição,
mas, se as coisas continuarem como estão,
o trono de Israel vai ficar em muito maus lençóis.
eis o que eu sugiro:
dar a uns poucos servos do rei de Tiro
todas as filhas de Moabe e de Amom.
oferta e demanda é uma lei natural.
uma avestruz acasalaria até com um chacal
se não visse outra opção.
que Vossa Majestade me perdoe a indiscrição,
mas, se as coisas continuarem como estão,
o trono de Israel vai ficar em muito maus lençóis.
Letra miúda
¡¿o que foi dessa vez?!
¿¡pra que todo esse auê!?
¿o que você ainda pensa
que falta esclarecer?
¿até quando eu vou ter que repetir
que Geena e Hades são pura convenção?
o mesmo vale pros amorreus, perizeus
e todos aqueles vários outros eus.
você é tão mas tão cri-cri
que faz de tudo pra não sair
da arapuca em que se meteu.
Pra não dizer impossível
quem lê o que eu escrevo nem desconfia
que eu ainda nem cheguei em Isaías.
¿o que vão dizer quando eu disser
que não cheguei sequer
a começar a ler
o livro de Ester?
e, ainda assim,
o pouco que eu li
me deu todo o know-how
que eu precisava
pra ser louco em tempo integral.
pois é, talvez eu tenha demorado
pra confessar esse pecado.
porque agora nego quer
que eu esclareça até
que fim levou o corvo
da arca de Noé.
¿como eu vou saber?
talvez nem ele saiba
onde pousou.
(não é todo pássaro
que tem plano de voo.)
Incorpórea
queria muito saber
se essa estrela que caiu
veio de Ás,
Quimá ou Quessil.
não é difícil perceber
que essa queda não foi acidental.
¿mas qual seria a razão
pra tanto baixo-astral?
não parece ter sido
um caso de surto bipolar,
e é improvável que ela tenha
desistido de se constelar.
de repente ela só quis
se certificar
de que não falte luz
na próxima Chanucá.
se for esse o caso,
seria muito legal
se ela resolvesse ficar
também pro Natal.
só tem um porém:
¿onde ela ia se hospedar?
perto do céu, mesmo um Sheraton
não passa de uma prisão domiciliar.
Há quem saiba
acho bom eu passar
a ser mais cauteloso
com o meu linguajar.
porque é só eu começar
a tirar onda de poeta
que alguém logo fala «selá».
ninguém nunca diz isso
durante uma conversa
ou no meio de um bacanal.
suponho que essa palavra,
além de controversa,
seja deveras formal.
pode ser que num sarau
eu encontre alguém que saiba
o seu sentido original.
só o que eu sei é que ela está
na boca de quase todos
os filhos dos filhos de Corá.
o chato é que eles me tratam
como se eu fosse
um cantor de karaokê;
pra tudo que eu pergunto
eles fazem doce
e dizem que é melhor eu nem saber.
Até que eu me desencante
te descrever o meu sonho
tim-tim por tim-tim
seria tão enfadonho
pra você quanto pra mim.
não é que eu esteja com pressa,
mas tudo o que me interessa
é saber o seu parecer
sobre o que aquela criança quis dizer.
e, se não deu pra notar
pelo meu semblante,
eu não vou me dar por vencido
até que eu me desencante.
o mais interessante
é que eu estava num museu
com centenas de outros visitantes.
¿por que foi que ela me escolheu?
e eu que achei que ela só queria
escutar a melodia
de uma canção de ninar
(tipo essas que qualquer um pode cantar).
agora, que eu vejo que isso
nem de longe é o bastante,
vou atender a todos os seus pedidos
até que eu me desencante.
não estou ainda falando
do filho de Jessé.
(não faço ideia de como ou quando
eu vou ser o pai que ele tanto quer.)
pra ele vir falar comigo
antes da sega do trigo,
só se for pra me avisar
que já estou mais pra lá do que pra cá.
pois que esse aviso venha
do melhor dos necromantes;
caso contrário, vou seguir cantando
até que eu me desencante.
Soneto do exílio
nem eu mesmo entendo o que eu digo;
sou como um cego guiando outro cego.
já sofri todo tipo de castigo,
mas parece que nem assim eu me enxergo.
deixo o meu choro pra alguma hora
em que alguém me reconheça.
já não é fácil me concentrar agora,
com tanta merda na minha cabeça.
não sei o que eu tenho de errado,
que não sirvo pra ser nem infiel nem crente.
não sei dizer nem o que é pecado.
¿será que o segredo é simplesmente
passar pela vida como um exilado
e só estar aqui de corpo presente?
A troco de reza
¿pra que perder tempo explicando
como eu vim parar aqui?
¿a culpa não é sempre de uma mulher?
mas, também, se não fosse ela
teria sido outra qualquer.
nunca tive lá muita sorte no amor.
em compensação, agora eu sei muito bem
de onde a minha força vem.
e pensar que eu pensava
que ia morrer sem revelar
quantas abelhas cabem na boca de um leão.
quem me dera ter a persistência
de quem não admite ouvir um não.
isso teria me poupado
de boa parte das brigas
em que eu me meti.
em compensação, agora eu sei muito bem
de onde a minha força vem.
Testamento cerrado
não me lembro bem
se eu estava num templo ou num harém.
não me lembro nem se estava com mais alguém.
me lembro, isso sim,
de ter visto dois serafins
guardando um grande trono de marfim.
confesso que fiquei abismado com essa visão.
porque, querendo ou não, o trono só podia ser de Salomão.
¿de quem mais seria? ¿Absalão?
¿ou seria, então,
daquele outro irmão temporão
que entrou pra genealogia da salvação?
um dia, talvez
todos eles tenham outra vez
a chance de fazer tanto quanto o pai fez.
mas ainda é muito cedo pra qualquer hebreu
sequer cogitar alcançar esse patamar.
Davi foi o primeiro e único a chegar lá.
¿e sabe por quê?
porque ele sempre soube agradecer
a quem realmente está no poder.
X
Lenha e rês
peço desculpas de antemão.
talvez eu leve mais um mês
pra conseguir dizer com convicção
«chegou a minha vez».
é que eu ainda estou pra expiar
uma última transgressão.
nada muito sério, não;
foi mais um vacilo meu.
não me dei a devida atenção,
e deu no que deu.
mas é com prazer que eu preparo
a lenha e a rês.
o mundo vai renascer de novo
(não pela água, mas pelo fogo).
então, e só então, eu vou entender
o valor do que eu ofertei.
A quem se deve o tributo
tenho que admitir
que eu não sei o que faria
se visse a realização
das suas profecias.
¿eu passaria a viver uma vida
de pura adoração?
quero acreditar que sim,
mas é provável que não.
¿eu viraria um pastor?
acho muito difícil.
porque aí eu ia ter que abrir mão
dos meus poucos vícios.
¿eu te daria um filho?
não vejo por quê
(a não ser que eu não tivesse
mais nada pra oferecer).
¿qual seria, afinal, o meu tributo?
¿com que moeda eu ia pagar
a hipoteca de uma casa
que eu nunca me esforcei
pra chamar de lar?
Por conta da casa
não conheço nada da cidade
pra onde vocês vão,
mas talvez eu possa ser útil
nessa peregrinação.
tenho ouro, incenso, mirra,
endro, cominho, hortelã. . ..
enfim, tantas coisas.
e tudo que é meu é corbã.
levem o que vocês quiserem.
só lamento que dessa vez
eu não esteja com tempo
pra viajar com vocês;
ainda tenho umas pendências
pra resolver com Belial.
(e com ele, vocês sabem,
qualquer descuido é fatal.)
mas vocês têm a minha palavra
de que, assim que der,
eu pego o meu alforje
e vou pra Nazaré.
nem que seja a pé.
Ferro e cobre
mesmo que eu não seja digno nem do seu desprezo,
se eu sair dessa juro que volto pra te dar
toda a atenção que você merece.
por aqui, só o que eu posso fazer
é me certificar de que aprendi a lição
que você quis me transmitir
quando me fez perceber que ninguém
é tão livre quanto pensa que é.
nem se eu fosse um desses reis pagãos
que vivem trocando os pés pelas mãos
eu teria como fingir que não sei
pra que lado rezar.
A descoberto
é mais que uma pena
que eu tenha levado tempo demais
pra tingir toda a minha lã de lilás.
porque também não foi nada fácil
encontrar um bordador
que seguisse as minhas instruções
sem tirar nem pôr.
o pior é que eu nem sei se devia
estar me expondo a tanta luz.
e o pano que sobrou não dá nem
pra improvisar um capuz.
talvez seja essa a ideia;
talvez você queira me ver insolar.
talvez eu não mereça usar
nem mesmo uma quipá.
Daqui pra cima
que ninguém me impeça
de ter o desprazer
de cumprir a promessa
que eu me forcei a fazer.
¿com que direito
vocês me pedem pra eu voltar atrás?
é isso que eu não aceito
e não vou aceitar jamais.
mesmo um juramento como o meu,
feito aparentemente
sem quê nem pra quê,
tem que ser levado
até as últimas consequências
—doa a quem doer—.
nem sei se sou bem-vindo
no lugar pra onde Elias foi;
mas é pra lá que eu estou indo
com três carneiros, dois bodes e um boi.
De circunstância
nunca que eu vou ficar
recebendo lição de moral
de uma pessoa que nem entende
por que hoje é um dia especial.
Mical. . ., ah, Mical. . .,
desce um pouco do seu pedestal.
vai cozinhar, sei lá;
qualquer coisa que te faça suar.
você, que é filha de Saul
(e que tanto se gaba de ter sangue azul),
é quem devia se envergonhar.
seu pai nunca deu atenção
pra arca que Moisés
mandou cobrir de ouro puro
da cabeça aos pés.
foram vinte anos de desdém,
mas parece até que foram cem.
(o tempo passa devagar
pra quem não tem por quem dançar.)
então vê se me deixa em paz,
que eu vou me rebaixar ainda mais
—quer você goste ou não—.
Honra e mérito
meus paisanos não se conformam
de eu conjugar
sempre os mesmos verbos,
e sempre no singular;
isso soa como um insulto
aos nossos ancestrais
(ou seja lá o que sobrou
dos seus restos mortais).
eu devo ser mesmo um caso perdido;
entre tantos mortos e feridos,
o único sangue que eu decanto
é o do Santo Graal.
¿e tinha como ser diferente?
nunca te vi rangendo os dentes,
mas o seu choro é sem dúvida
o mais cabal.
me admira que eu ainda
pense em te consolar.
De tanto andar
mesmo erguer um altar
no topo do monte mais sagrado
de nada ia adiantar
se eu continuasse te deixando de lado.
nenhuma façanha tem
o poder de unir
céu e terra num corpo só.
fiz o que achei que devia,
mas eu sabia que um dia
de tanto andar no seu encalço
eu ia terminar descalço.
Indistinto
¿sabe que eu sempre achei
que fosse parar na ribalta?
eu não me via em condições
de me interessar
por uma luz mais alta.
foi mesmo uma bênção
ter sido tão ignorado.
não sei se tudo tem um motivo,
mas não é por acaso
que eu ainda estou vivo.
tão vivo como um planeta
que não faz mais distinção
entre rotar e transladar.
XI
A epístola perdida
fico meio sem jeito de admitir
que só agora eu soube do que houve em Sinar.
dizem que notícia ruim se espalha rápido,
mas essa demorou pra chegar.
eu nem sabia em que língua ia escrever;
como a gente se conhece de outros carnavais,
escolhi o português por razões
puramente sentimentais.
a pedra que eu ergui continua aqui.
¿e a sua torre cadê?
se ainda quer ir pro céu venha pra Betel,
que você não vai se arrepender.
¿você sabe o quanto eu enriquei
desde aquele seu discurso em que você me acusou
de ser exageradamente detalhista,
exigente e sonhador?
a escada que eu vi continua aqui.
¿e a sua torre? ¿cadê?
se ainda quer ir pro céu venha pra Betel,
que você não vai se arrepender.
não precisa se preocupar
nem com a conta de luz;
o que eu juntei de azeite
dá pra mais de dez gerações.
a pedra que eu ergui continua aqui.
¿e a sua torre cadê?
se ainda quer ir pro céu venha pra Betel,
que você não vai se arrepender.
Avreque
eis aqui um ex-servo de Potifar
recém-convertido em premiê.
isso seria um bom motivo pra comemorar
se eu não tivesse tanto que fazer.
pra começar, vou viajar
até conhecer cada canto desse país.
o único lugar em que eu não pretendo entrar
é o templo onde eles fingem que conversam com Rá.
torço pra que essa minha grande turnê
seja útil pra quando eu impuser
um imposto sobre tudo que se possa comer
com o auxílio luxuoso de uma colher.
um quinto de cada eira e de cada lagar
não me parece nada de mais.
mas mesmo que reclamem: quando a fome apertar,
¿quem vai ter saco pra checar as minhas credenciais
ou pesquisar os meus antecedentes criminais?
A dança da centopeia
não é de surpreender
que você mal tenha
conseguido esconder
a perplexidade que sentiu
quando leu o meu résumé.
¿como é que eu,
que nem tenho ensino superior,
posso ser mais rico que o governador?
não vou dizer que não tive sorte,
mas também foi fundamental
ter escolhido subir o Gerizim
antes do Ebal.
a fé que isso me deu
é algo que só mesmo Eleazar
ou Josué saberiam te explicar.
Sobre macacos e pavões
não estou exagerando quando digo
que não me impressiono com ninguém.
na minha cabeça, nem mesmo Matusalém
merece a fama que tem.
¿vocês não se cansam dessa rotina
de calendário lunissolar?
¿não seria uma boa ter outras histórias pra contar
fora as da Torá?
uma coisa é vocês quererem me apedrejar
sempre que eu passo batido por Meribá;
outra é quererem que eu me porte
como um sacerdote.
nunca fui assim tão iluminado.
pelo contrário, aliás:
¿por que eu teria mandado fazer dez castiçais
se um já estivesse bom demais?
e não me venham usar as terras que eu dei pra Hirão
como um exemplo do quanto eu sou sem-noção.
se elas não são nenhuma Coca-Cola,
também não são de se jogar fora.
enquanto uns aproveitam a vida,
outros ficam de mimimi.
de nada vale todo o ouro de Ofir
pra quem não sabe se divertir.
Gourmet
¿acredita que hoje vieram me propor
que eu passe a me vestir como um frei
pra que pensem que eu nem dou assim tanto valor
pra toda a grana que eu arrecadei?
querem muito me ver com uma túnica marrom
que estão vendendo num bazar
em benefício das vítimas do Armagedom
por um preço espetacular.
também disseram, meio que en passant,
que não seria uma ideia má
se a partir de amanhã
eu maneirasse no caviar.
nessa hora só o que eu disse foi «aham».
esses caras nunca vão saber
nem o que é ser um gourmand,
que dirá um gourmet.
Do bom e do melhor
devia ser proibido
mencionar o que eu comia
quando morava em Ramessés.
era peixe, pepino, melão,
cebola, alho, alho-poró. . ..
e tudo do bom e do melhor.
longe de mim dar uma de ingrato;
cansei de ver o que acontece
com quem se julga acima do bem e do mal.
essa é a única razão
pra eu fingir que ainda sou louco por maná.
porque tem dias que eu enjoo só de olhar
pra todo esse mel.
À míngua
o meu tempo é sempre tão escasso
que mesmo quando me bate um cansaço
geralmente eu disfarço.
só vou pensar em relaxar
quando me reencontrar com Tamar.
(e mesmo nesse dia eu não vou me conceder
mais que uns quinze minutinhos de lazer.)
o ideal é ser menos Marta que Maria,
mas a minha vida já me parece bem vazia.
(bem mais do que eu gostaria.)
¿como querem que eu me sinta merecedor
de todo esse infinito amor
que eu guardo a sete chaves no meu plexo solar
se até a minha vara eu tive que penhorar?
O mensageiro fiel
¿quer que eu repita o que Aimaás
acabou de te contar
ou quer que eu tenha a hombridade
que só mesmo um cuxita pode ter?
seja como for, não custa lembrar
que em qualquer batalha que se preze
nunca é de graça que se toca um shofar.
Esse sim
enquanto eu engordava o meu gado em Basã,
meu servo nascido em Damasco conseguiu
a proeza de torrar em meia hora de bacará
o equivalente a mais de dez seás
de trigo, cevada, centeio e outros grãos integrais.
isso é que é um bom capataz.
Incontornável
que você me ama
e me escuta desde sempre
eu nunca duvidei.
o meu espanto veio
da rapidez
com que você satisfez
as minhas pretensões
mais terrenais.
pensei que passar
de Sitim pra Gilgal
fosse um processo
muito gradual.
mas, enfim, esse deve
ter sido o menor
dos erros que eu cometi
durante os meus anos
de total abstração
de tudo que tivesse a ver
com perder e ganhar
ou dar e receber.
depois do que
aconteceu em Massá,
eu é que não ia
querer te provar.
como se isso fizesse
diferença pra você;
ninguém pode escapar
de colher onde não plantou.
XII
Acima de qualquer suspeita
se eu não tivesse
sido tão teimoso,
teriam me suicidado
muito antes.
ou não.
talvez até a minha morte
tenha acontecido num lugar e numa hora
devidamente predeterminados.
vou descobrir a resposta
pra essa e pra outras perguntas
assim que terminar de interrogar
aqueles homens que te encontraram
no caminho pra Emaús.
em princípio,
seria mais simples
ir ter de novo
com os outros onze.
mas é melhor
que eles não saibam
que eu ainda não estou convencido
nem de que você já voltou.
quando Tomé botou o dedo nas suas feridas,
¿você pensou que eu estava
acima de qualquer suspeita
ou foi só pra manter as aparências
que eu fiquei de fora dessa?
Consumição
não posso encarar
a derrubada de uma asherá
como uma atividade extracurricular.
nem posso esperar
pelo retorno de Sangar
ou de qualquer outro juiz similar.
o que ele tinha de força muscular
é o que eu tenho de pressa pra encontrar
aquele único pilar em que eu preciso me apoiar
pra ser enfim um homem livre apesar
de todos os votos que eu não fui capaz de quebrar.
Entre um batismo e outro
entre um batismo e outro
tiro uns segundos pra me torturar
por ainda ter a ambição
de ser lembrado como um grande pregador.
¿por que é tão difícil me conter
sempre que vejo um sírio
minimamente interessado em se lavar
em qualquer rio que não seja
o Abana ou o Farpar?
Sinótico
¿como foi que aquele moço se desfez
dos seus ativos
de baixa liquidez?
¿como foi que, do nada,
toda a manada ficou interessada
em ir pastar no seu curral?
¿e o que ele fez com os seus outros bens?
¿será que deu metade pros pobres,
à la Zaqueu?
na certa ele vai ter um trabalhão
pra explicar pra Marcos, Lucas e Mateus
o que realmente aconteceu.
só espero que ele não vá se entristecer
se nem assim ganhar uma menção
no evangelho de João.
Consumação
por muito que me acinzentar seja tentador,
desde que li a história de Nadabe e Abiú
venho preferindo ser consumido cru.
quem quiser que me acompanhe com sal, molho rosé
ou o que quer que ajude a me fazer descer.
Completude
essa solidão
é até rudimentar
perto da que está por vir.
de fora podem pintar
o quadro que for;
não vou nem esboçar uma reação.
estou ocupado demais
honrando uma promessa de rendição
tão antiga quanto eu.
não é que amanhã
ou semana que vem
eu ache que vou ser mais feliz;
eu já tive mais
do que idealizei
e muito mais do que soube articular.
nem sei o quão raro isso é;
só sei que é de bom grado
que eu me dou por conhecer.
no fundo, isso é o que eu sempre quis.
e agora eu entendo o porquê.
A pé enxuto
uns vivem só com o que têm
(o que eu já acho incrível),
mas não sei de ninguém
que esteja no seu nível.
outros adoram servir.
mas você vai além:
você dá tudo de si,
não só o que te convém.
atravessar o deserto
devia ser o de menos
pra quem está sempre tão perto
de morrer do próprio veneno.
por isso é que muito me espanta
que você siga os mesmos rituais
de quem espera até a Semana Santa
pra deixar o Egito pra trás.
Em pé de igualdade
mesmo sendo eu um homem
mais de fé do que de instinto,
nada justifica toda aquela moral
que eu vinha te dando.
você podia —ou, melhor, devia—
ter sido apenas um amigo meu.
ou no máximo um irmão mais velho:
alguém que já encarou
uns temporais bem cabulosos
mas que nem por isso pode prever
o vaivém das ondas.
a única grande diferença
entre você e os outros pescadores
é que o seu sono é pesado que só ele.
Furtivo
em tudo que é quebra de matzá
tem sempre alguém
achando que vai me achar
na mesma mesa que você.
mas mesmo quem mais quer acreditar em mim
cedo ou tarde vai ter que concluir
que eu nunca estive nem aí.
em tudo que é quebra de matzá
tem sempre alguém
achando que vai me achar. . ..
De uma outra sétima
que bom que ainda não é tarde demais
pra me abrigar na sua palavra.
porque logo logo também o meu corpo
vai se repartir em vinho e pão.
¿será que em Betsaida e Corazim
ninguém se arrependeu do que não fez?
¿era assim tão ruim viver à mercê
de uma vontade de ordem maior
e mais que natural?
mas, então, ¿o que eles queriam?
¿voltar pros braços da Lua e do Sol?
da minha parte, posso até morrer
sem ver a terra que você prometeu;
desde que eu saiba que alguém vai continuar
do ponto onde eu parei
(seja ele qual for).
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